Reflexões sobre o “Hate Speech”
Artigo publicado em 2012 no
Boletim do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_sumario/275-236-Julho-2012
1. Hate Speech (“Discurso de Ódio”): noções gerais
O “Hate speech” (“Discurso de Ódio”) pode ser definido como manifestações e representações negativas, pejorativas, cuja intenção seja a promoção do ódio e a propagação de ataques virulentos a negros, muçulmanos, judeus, homossexuais, entre outros. Como bem observa Anthony Lewis, trata-se de “ódio” puro, não baseado em algum erro praticado pelo indivíduo.(1) O discurso de ódio é também chamado de “propaganda de ódio”.
Essas mensagens odiosas se concretizam das mais variadas formas: filmes, livros, cartazes, propagandas, sempre com a característica de oferecer uma representação negativa, pejorativa de um determinado grupo.
A repulsa ao discurso de ódio se intensificou após a Segunda Grande Guerra, como uma preocupação em relação ao passado, caracterizado pela propaganda racista e pelo Holocausto. Buscou-se, então, uma delimitação da liberdade de expressão, entendida como direito individual que está limitado pelos demais valores humanos.
Os padrões internacionais para o exercício e para a limitação da liberdade de expressão foram estabelecidos pelos arts. 19 e 20 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, e pelo art. 4.º da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial na Europa. Esses documentos internacionais regulamentam a liberdade de expressão, além de vedarem o discurso de ódio.
Nas palavras esclarecedoras de Zaffaroni, os discursos de ódio se estruturam de maneira simples e eficaz. Como nos ensina o magistrado e professor argentino: “Esta estructura se apoya en dos vigas o elementos dogmáticos presupuestos: a) la jerarquización biológica y b) la cosmovisión conspirativa.A su vez, toda la construcción se envuelve con un manto de humanitarismo notoriamente hipócrita”.(2)
O citado autor alerta, ainda, que estes discursos não mudam, e continuam com a mesma estrutura em todos os momentos históricos. Como exemplo, ele cita o Livro Protocolo dos sábios de Sião.(3)
As mensagens negativas, com os referidos discursos, espalham-se pela literatura, pela música e pelos filmes. O problema é que eles acabam sendo aceitos pela sociedade, tornando-se latentes na percepção cultural. O prejuízo acarretado com a criação de “estereótipos” nos discursos é a desumanização do ser humano, a minoria atacada.
De acordo com Mari Matsuda, ativista da linha “revisionista” e professora de Direito da Universidade da Califórnia, o problema central do preconceito é que ele se torna inconsciente: “essas ideias são tão bem plantadas e repetidamente apresentadas que, fica difícil a sua não interiorização”.(4)
Como exemplo, a autora relata uma experiência pessoal. Apesar de ser uma ativista fervorosa da regulamentação do discurso de ódio, de tanto ouvir e receber mensagens negativas sobre indianos, diz que, ao se deparar com uma indiana, em vez de pensar na beleza de seu sári, recordou-se das mensagens horríveis que havia escutado minutos antes. Somente após uma forte reflexão, afastando-se daquelas mensagens, embutidas em sua mente, pôde continuar com impressões positivas em relação à mulher indiana. Mari Matsuda esclarece que aquela propaganda havia causado um dano de “retrocesso” em relação seus sentimentos.(5)
A História nos ensina que o movimento ideológico racista funciona como uma legitimação da degradação de determinados grupos vulneráveis e, ao longo do tempo, instrumentaliza perversidades, como, por exemplo, o genocídio. Desta maneira, Alexander Tsesis lembra que esperar para combater o discurso de ódio até que aconteça algo é, sem sombra de dúvida, ignorar as lições empíricas da História.(6)
2. Consequências nefastas do discurso de ódio: desapoderamento das minorias e danos
Um dos aspectos mais nefastos em relação aos discursos de ódio é a questão dos efeitos psicológicos causados nos grupos vulneráveis atacados.
As discussões sobre formas de repúdio ao discurso de ódio são abstratas. Porém, as consequências e os danos são reais e imediatos.
De acordo com uma pesquisa realizada por psicólogos americanos, os grupos sujeitos a mensagens de ódio, por mais que tentem resistir, acabam por interiorizar a mensagem em seus inconscientes e por incorporar um sentimento de baixa autoestima.
As vítimas apresentam problemas mentais e de saúde. Essas minorias sentem-se privadas de sua liberdade, impotentes para evitar o confronto. Os problemas práticos por elas enfrentados são variados. Entre outros, podemos citar: criação de barreiras no mercado profissional, como a dificuldade para encontrar um emprego ou sua desistência; abandono da faculdade; constrangimento a visitar determinados locais; negação de empréstimos.
Em síntese, podemos dizer que a consequência do discurso de ódio causa o “desapoderamento” das minorias. Apesar da existência de políticas afirmativas para estes grupos, os danos causados são evidentes.
3. O “efeito silenciador do discurso de ódio”
Ainda a respeito das consequências do discurso de ódio, destaca-se, de forma pontual, o dito “efeito silenciador”.
A este respeito, Owen Fiss não enxerga o “hate speech” como uma ameaça de persuasão que poderia causar uma nova forma de “ditadura” ou governo extremista.
Em seu livro The Irony of the Free Speech, o autor alega que o problema do “hate speech” é ter o efeito destrutivo da autoestima da vítima, tornando-a impotente e impossibilitando um confronto ou debate equilibrado com o opositor.
As vítimas, na maioria das vezes, tornam-se “diminuídas” e enfraquecidas, diante de ataques hostis, e não possuem a devida articulação para o debate ou o confronto.
Conforme salienta Owen Fiss, “sometimes we must lower the voices of some in order to hear the voices of others”.(7)
Para a solução do “efeito silenciador” do discurso de ódio, que potencializa suas consequências, Owen Fiss propõe uma intervenção do Estado para um debate equilibrado e diz que neste sentido o Estado é um “aliado” da minoria atacada.(8)
4. A mundialização do discurso de ódio: desafios
O discurso de ódio é proibido no Brasil, de acordo com art. 20, § 2.º, da Lei 7.716, de 05.01.1980 (Lei de Discriminação Racial).
O STF já enfrentou o tema no HC 82.424/RS, no qual proferiu uma lição de empatia e humanismo, ao reconhecer a existência de limites morais e jurídicos ao exercício da liberdade de expressão, que não pode ser vista como absoluta: “o direito à livre expressão não pode abrigar em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal” (STF, Tribunal Pleno, rel. Min. Moreira Alves, j. 17.09.2003, m.v., DJ 19.03.2004).
Na atualidade, sabemos que mesmo depois da decisão da mais alta Corte brasileira, existem debates sobre a proteção constitucional de livros racistas como forma de liberdade de pensamento e, ainda assim, vários livros desta espécie continuam sendo vendidos.
Outro grande desafio para o combate ao ódio é a nova forma de sua propagação, a Internet. Trata-se de um meio rápido e barato para difusão de ideias, para incitamento à hostilidade e para elaboração de campanhas fervorosas de intolerância. Existem centenas de sites e de blogs com discursos de ódio.(9)
Muitos dos sites e dos blogs são hospedados fora do Brasil, com vistas a se escapar de uma eventual persecução e condenação. Isto porque o procedimento para identificação do agente criminoso é complexo e exige tempo, além de requerer a cooperação internacional de companhias provedoras de serviço de Internet.
5. Reflexão para conscientização da empatia
Daquilo que se acabou de expor sobre as terríveis consequências do “hate speech”, vale lembrar a lúcida reflexão de Charles R. Lawrence III sobre o tema.
O autor questiona, com ironia, a razão de uma mesma minoria carregar o fardo da manutenção da tolerância na sociedade. Por que o sacrifício de apenas um grupo? O citado ativista americano esclarece o seu inconformismo: “Derrick Bell has noted that often in our constitutional history the rights of Blacks have been sacrificed because sacrifice was believed necessary to preserve the greater interests of the whole. It is not just the actual sacrifice that is racist but also the way ‘whole with the greater interests’ gets defined ”.(10)
Será que não devemos todos aguçar nossa empatia? O vocábulo empatia é definido pelo Dicionário Aurélio como: “tendência para sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstâncias experimentadas por outras”.
Muitas vezes o julgador decide a favor da liberdade de expressão, por razões variadas. Pode assim decidir por não fazer parte daquela comunidade atacada, ou por não ter oportunidade de maiores esclarecimentos históricos sobre a perseguição e sofrimento de determinado povo.
Adotando uma postura de repúdio ao “hate speech”, Lawrence ressalta que existe uma negligência na criação de alianças entre as vítimas destas manifestações ofensivas, o que contribui para a continuidade de ideologias racistas na nossa comunidade e para nós mesmos.(11)
Dessarte, é preciso encontrar formas de engajamento para resistência em relação às ideias racistas que são protegidas sob o manto da liberdade de expressão. Se fracassarmos nessa missão, as vítimas do “hate speech” persistirão. A comunidade jurídica pode criar exceções e estreitar os limites do exercício da liberdade de expressão, em prol de outras liberdades públicas igualmente relevantes.
NOTAS
(1) Lewis, Anthony. Liberdade para as ideias que odiamos – Uma biografia da Primeira Emenda à Constituição americana. Tradução Rosana Nucci. São Paulo: Aracati, 2011. p. 193.
(2) Zaffaroni, Eugenio Raúl. El discurso racista: eficacia de su estructura. Eguzkilore, San Sebastián, n. extraordinario 11, p. 260-261, dez. 1997.
(3) “A obra apócrifa Os protocolos dos sábios de Sião pode ser considerada como uma das principais matrizes do pensamento anti-semita no Brasil contemporâneo. Nos dias de hoje, esta obra – apesar de ser uma das maiores falsificações do século XX – ainda cumpre com um dos seus objetivos: o de criar dúvidas sobra a comunidade judaica onde quer que ela exista. Cada vez que uma nova edição “pirata” surge, a intranquilidade toma conta dos ânimos alterando o raciocínio lógico. Essa obra é, e será – daí a força do mito – um permanente veneno. Cabe à sociedade buscar o antídoto adequado de forma a combater o sentimento anti-semita que emana principalmente da extema-direita, verdadeiro viveiro de cobras. Se para os historiadores os Protocolos são fonte testemunhal do discurso anti-semita, para a comunidade judaica é um elemento de tensão. É aqui que está o perigo do mito: na sua imortalidade, atualidade e capacidade de multiplicação adaptando-se as novas tecnologias. Daí a metáfora do ovo da serpente, por nós adotada enquanto expressão da ressurreição do perigo anti-semita que ronda, misteriosamente, a sociedade contemporânea” (Carneiro, Maria Luiza Tucci. O veneno da serpente. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 52-53).
(4) Matsuda, Mari J. Public response to racist speech: considering the victm’s story. In: Crenshaw, Kimberlè Williams; Delgado, Richard; Lawrence III, Charles R.; Matsuda, Mari J. Words That Wound – Critical Race Theory, Assaultive Speech, and the First Amendment. Boulder: Westview Press, 1993. p. 25.
(5) Idem, p. 26.
(6) Tsesis, Alexander. Destructive Messages (Critical America Series). New York: NYU Press, 2002. p. 30.
(7) “Às vezes devemos abaixar as vozes de alguns para poder escutar as vozes dos outros” (Fiss, Owen M. The Irony of Free Speech. Harvard University Press, 1998. p. 52).
(8) Fiss, Owen M. Op. cit., p. 28.
(9) Rosenfeld, Michel. Extremist Speech and the Paradox of Tolerance. The tolerant society: Freedom of Speech and Extremist Speech in America. Lee C. Bollinger. Harvard Law Review, 1987. Disponível em: . Acesso em: 1.º dez. 2011.
(10) “Derrick Bell notou que em nossa história constitucional os direitos dos negros foram frequentemente sacrificados, pois o sacrifício era julgado necessário para preservar os maiores interesses de um todo. Não é apenas o sacrifício em si que é racista, mas também ‘o todo com maiores interesses’ deve ser definido” (Lawrence III, Charles R. If he hollers let him go: regulating racist speech on campus. In: Crenshaw, Kimberlè Williams; Delgado, Richard; Lawrence III, Charles R.; Matsuda, Mari J. Op. cit., p. 81-86).
(11) Idem, ibidem.
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